quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Eu era um editor valeriano

 


Espaço, ligeiramente acima da órbita terrestre, uma estação serve de nexo para raças, culturas e alienígenas. Camões ficaria extasiado ao perceber que no futuro ainda se mudam os tempos e as vontades, só não muda o fenótipo do big boss de plantão.

Ainda mais de longe, um editor assiste para a cena.

«Não está certo, falta aqui uma mulher.»

É verdade. Ao invés de velhos brancos e chatos, podemos ter velhas brancas e chatas.

Mas e o(a)s novo(a)s?
E o(a)s negro(a)s?
E o(a)s judeu(ias)?

Não foram eles também importantes para a História da humanidade?

Não foi índio brasileiro uma inspiração para a revolução francesa? Porquê não um líder espacial nu e com o cabelo pintado de urucum? Será que não estarei a ser preconceituoso ao imaginar um índio que vai ao espaço, mas que continua pelado e com a mão no bolso? Será que ele ainda é índio se estiver vestido?

Homem…
Homem e mulher…
Negro, índio e judeu…

Não interessa quem for o líder, nos poucos minutos que o guionista tem para conseguir passar uma mensagem ao espetador, é impossível ser justo para com tudo e com todos.

E isto significa que tenho que fazer escolhas, objetivas ou não.

Opinião é como o rabo, alguém já dizia. O problema é que qualquer decisão será sempre baseada numa ideologia, numa visão de mundo, ainda que eu a chame de “opinião dos especialistas”.

Ao decidir entre homem e mulher, entre negro ou branco, estou a por em prática uma ideologia e a dizer para mim mesmo que ela é a mais correta. Mas pode não ser, e é por isso que há quem defenda o direito de liberdade de expressão acima de todos os outros.

«Não concordo com nada do que dizes, ó estúpido, mas defenderei até a morte o direito de o dizeres.»

Talvez eu possa ser objetivo e seguir a cartilha pela qual a minha empresa reza? Mas e se eu trabalhar para fascistas ou para comunistas que comem criancinhas? Abaixo a cabeça e lambo umas botas?

«Amém e gloria in excelsis, vós que detendes a caneta e o cheque.»

Quando a alternativa é a fila do instituto de emprego, a ética e os valores pessoais tendem a ir para o caixote do lixo.

E o mais engraçado é que tanto faz e tanto fez. Objetivamente ou não, as minhas decisões serão sempre parciais e refletirão sempre uma ideologia. E isso significa que, no fundo, são todas igualmente imperfeitas.

A História é escrita pelos vencedores e revisada pelos editores.

Talvez deva assumir-me como "isto" ou como "aquilo" e escolher… Talvez seja melhor seguir o livro de estilo de mais alguém e siga pra bingo…

Não há grandes convicções aqui, apenas editores que tentam publicar — on the fly — a vida certa para o público certo, e quando se falha há sempre o inferno que são os outros.

Sigo assim na tentativa de ser bestial, na esperança de não terminar como uma besta e na certeza de que quem nada faz, nada parte.

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