quinta-feira, 14 de outubro de 2021

3.3. Tradutor, revisor, designer, paginador, marqueteiro


O meu pai tinha um amigo que dava aulas de engenharia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A primeira sessão com caloiros era um ritual que se repetia sempre com as mesmas palavras: ele dizia que eram todos uns parvos por escolherem uma profissão que estava a morrer, depois dizia que para sobreviverem no terceiro milénio, teriam que ser patos.

Nenhum animal representa melhor os millennials do que o pato.

O Pato anda mal, mas anda. Voa mal, mas voa. Nada mal, mas anda. É o verdadeiro factotum da natureza.

No desenvolvimento web há três áreas distintas: backendfrontend e design. Não têm absolutamente nada a ver uma com a outra, e quem programa numa — normalmente — odeia trabalhar nas outras duas, mas, por razões meramente economicistas, as empresas querem o pato, também conhecido como fullstack developer.

Há patos nas redações dos jornais e até em cafés, mas interessa-me aqui falar sobre o pato escritor.

A não ser que alguém seja um youtuber de muito sucesso, tenha tido um caso com a Madonna ou com o Cristiano Ronaldo, ou alguns connects muito interessantes, ser publicado por uma editora tradicional é um sonho improvável. E a realidade fez nascer os autores independentes cujos ebooks tanto abundam na Amazon.

O autor independente acorda de manhã, põe o seu chapéu de escritor, e começa a escrever.

Um pouco antes do almoço, ele troca o chapéu e vai revisar a sua obra.

«Sabem quanto um revisor cobra por lauda? Deixa estar que eu mesmo faço.»

Ao tomar o café, ele abre o InDesign e começa a paginar. Depois, segue para o Corel Draw e faz uma linda capa com imagens gratuitas garimpadas em algum serviço de stock media na internet.

O resto do seu tempo é passado com o chapéu de marketeer, a criar posts no Instagram, a participar de forums e a divulgar a sua obra de mi e uma maneiras.

Ontem eu estava na minha aula de Informática para a Edição e o professor explicou-me que eu estava a usar mal o InDesign porque não podia simplesmentes inserir texto, tinha que garantir que cada linha (um romance tem mais de 40.000 palavras) estavam "alinhadas" na página, ocupando exatamente o mesmo lugar.

— Tás de sacanagem! — Disse.

— Pois... — Ele respondeu. — Agora começaste a perceber o trabalho que dá ser paginador.

Eu já sabia o quão difícil era ser escritor. Não é fácil criar mecanismos automáticos para facilitar construções linguísticas interessantes.

Já tinha bem noção de quão difícil é dominar o português bem o suficiente para poder revisar, e de como é impossível ter a distância necessária para fazê-lo com o prório texto.

Estar num mestrado fez-me perceber o quão difícil é editar e paginar.

Só posso chegar a conclusão de que um pato factotum autor independente ou é o main man — um génio, a reencarnação de Einstein — ou é uma merda (pelo menos numa das áreas a que se propõe). Tendo mais para esta última.

Acredito na virtude da ambivalência e — até certo ponto — não acho que seja mal ser pato. Mas a arrogância de achar que se pode fazer tudo bem só pode acabar em tragédia.

O último que tentou chegar aos céus e não era dono nem da Virgin, nem da Tesla, acabou no fundo do mar com as asas derretidas.

E o pior é que esta é uma luta impossível de se vencer, porque não tem a ver com o que se quer, mas com o que se pode. É a imposição do mercado e da falta de opções.

Não vou considerar aqui os inúmeros péssimos autores que veem na autopublicação o caminho mais rápido para mudar de sobrenome e passarem a chamar-se Flaubert, mas quantos editores rejeitaram bons autores, que acabaram por não ter outra opção senão tentar fazer tudo sozinhos?

E quantos editores/revisores/paginadores/capistas perderam empregos — e de editoras que faliram — por causa da enxurrada de autopublicações que saturou ainda mais o mercado?

Neste círculo vicioso insolúvel, talvez o melhor mesmo seja assistir àquela música do Aladdin e cantar junto: um Mundo Ideal.

1 comentário:

  1. Muito engraçada esta ideia de millenial como um pato! De facto, fazer um pouco de tudo pode ser muito bom e importante mas inevitavelmente falha alguma tarefa e pode-se correr o risco de não haver especialização em nenhuma e antes ter um conhecimento geral mas superficial.

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.

Calinadas

« As pessoas divertem-se muito a descobrir erros nos jornais, por isso gostava de lembrar que os primeiros a ser dispensados, muito antes de...