‘A Arte do Romance’ é um livro de não-ficção, em que Milan Kundera reflecte sobre o seu próprio trabalho enquanto romancista (e não escritor, porque os romancistas querem esconder-se por de trás do seu trabalho, deixando-o falar por si, segundo o autor). Dividido em sete partes, tal como a maioria dos romances de Kundera, este livro é composto por reflexões do autor sobre a importância do romance ao longo dos séculos, excertos de entrevistas que Kundera deu e até por definições das “palavras-tema” nas quais os seus textos se baseiam.
É interessante como o livro começa e acaba como se fosse um
círculo. Isto é, a primeira e última partes comunicam entre si como se a
primeira fosse a introdução e a última fosse a conclusão que reforça alguns dos
pontos importantes que foram introduzidos na primeira.
Para além de tudo isso, o que mais me atraiu a este livro –
e eu não costumo ler não-ficção – foi mesmo o facto de puder ter acesso às
ideias de um autor sobre os livros que escreveu. Como é que ele pensou nos
temas, como é que organizou as suas histórias, o que pensa sobre as questões
mais importantes deixadas por cada personagem.
Já tinha lido A Insustentável Leveza do Ser em 2020 e agora
ainda fiquei mais interessada em reler esta obra que me intrigou tanto na altura.
Lê-la à luz das ideias de Kundera sobre ela é uma experiência totalmente
diferente. Esta leitura também me fez querer ler muitos outros livros que
Kundera escreveu e que são mencionados neste livro (acho que está na altura de
preparar a minha lista de prendas para o Natal).
Deixo aqui algumas considerações minhas sobre as partes do
livro que mais me suscitaram interesse:
O primeiro capítulo é “A Herança Desacreditada de
Cervantes”, onde o autor elabora sobre a história do romance europeu –
referindo alguns dos maiores romancistas como Tolstoi, Flaubert e Kafka – desde
os tempos de Descartes até aos dos media modernos. A importância do romance na
cultura europeia é afectada por uma crise, crise essa que se estende desde os
tempos dos filósofos coetâneos de Galileu. Assim, presume-se que esta é uma
crise de identidade, que move os europeus numa busca incessante pelas respostas
às mil e uma questões que, ao longo da história, os assombraram: Deus existe? O
que é o pensamento? O que é o tempo?
Só que, de tanto procurarem estas respostas, os Homens
acabaram por reduzir o mundo apenas aos domínios das ciências técnicas e
exactas – um pouco como hoje ainda acontece – pondo de lado todos os outros
domínios da existência, deslocando-se para o que Heidegger, discípulo de
Husserl, chamava “o esquecimento do ser”.
Desta forma, o romance surge como a tentativa de lembrar a
humanidade do próprio ser, impedindo este tal esquecimento; enquanto,
simultaneamente, permite à sociedade pensar e descobrir-se a si própria. Esta
arte do romance como “a exploração do ser esquecido” começou, justamente, com
Cervantes, autor de D. Quixote
Como o romance joga com diferentes opiniões e “verdades” de
várias personagens, impedindo que o leitor e o protagonista se guiem por uma
verdade suprema ditada por Deus, a sabedoria do romance, “a sabedoria da
incerteza”, como está presenta em D. Quixote, é difícil de compreender. E, com
o passar dos séculos, os seus temas e formas de abordar as várias
possibilidades da existência vão mudando. Chega a um ponto em que a aventura
deixa de ser o centro, para passar a ser imensos paradoxos, consequência do
próprio evoluir dos tempos modernos e os efeitos que isso tem nas pessoas, como
a alienação do ser, a ideia de uma máquina totalitária que tudo engole e da
qual a humanidade não consegue fugir. Embora se esperasse que a modernidade
tornasse humanidade, dividida em várias culturas, em uma unidade na qual todos
podiam prosperar, essa unidade revelou-se na guerra (Primeira Guerrra Mundial),
impondo o sentimento de que “ninguém pode escapar para parte nenhuma” porque a
guerra está em todo o lado, ninguém consegue fugir à unidade da Humanidade.
O momento em que os romances começam a focar nesses
paradoxos e na ideia de que o Homem não pode fugir para parte nenhuma coincide
com os romances de Kafka, em que a guerra não é algo exterior e facilmente
identificável, mas é todo um sistema que governa todos os aspectos da vida dos
cidadãos e, claro, ao qual estes não podem sequer ousar escapar.
No evoluir da sociedade para a afirmação e consolidação de
regimes totalitários, o romance revela-se algo perecível. Sendo ele o reino das
ambiguidades do pensamento humano, não tem qualquer lugar nos regimes
totalitários. Assim, ele morre, de forma subtil e despercebida, mas efectiva. “Se
realmente o romance tem de desaparecer, não é que tenha esgotado as suas
forças, mas é porque se encontra num mundo que já não é o seu”.
Com efeito, o século XX (e mais tarde o XXI) tem um espírito
dominado pelos mass media, que é contrário ao do romance. “O espírito do
romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor que as
coisas são mais complicadas do que tu pensas. É a verdade eterna do romance,
mas que cada vez se faz menos ouvir na algazarra das respostas simples e rápidas
que procedem a pergunta e a excluem”. De uma certa medida, isto é verdade. O
ritmo acelerado, a urgência das notícias, a sua simplicidade, tudo são
características contrárias às do romance.
No caso de Portugal,
é bem verdade que as redes sociais têm muito mais utilizadores do que os livros
têm leitores, talvez porque ler implica ter atenção prolongada, dedicação e
paciência, tudo coisas que levam tempo e que os media, pelo seu carácter
instantâneo, não invocam. São mundos contrários, mas até que ponto é que um
pode mesmo excluir o outro? Nas notícias, normalmente há uma versão dos
acontecimentos e um lado bom e um lado mau, ao passo que nos romances,
normalmente a questão é mais complexa do que este preto no branco. O tempo do
romance é uma continuidade e comunicação permanentes entre o passado, o
presente e o futuro (os três tempos de Agostinho), ao passo que as notícias são
puramente fruto do presente, deixando de ter valor rapidamente quando o tempo
passa.
“Incluído neste sistema, o romance já não é obra (coisa
destinada a durar, a ligar o passado ao futuro) mas acontecimento da actualidade
como outros acontecimentos, um gesto sem amanhã”, referência às notícias que
surgem hoje, mas nunca mais têm follow-up, ao contrário dos romances que
costumam ser lidos muitos anos depois, e até seculos depois de terem sido
publicados. Ou seja, se o romance quer continuar a existir dentro da sua
história, se quiser continuar a evoluir, tem de fazer o seu percurso “contra o
progresso do mundo”.
Esta ideia final da corrupção dos mass media no espírito do
romance é reiterado no discurso de agradecimento de Kundera quando ganhou o
Prémio de Jerusalém em 1985, a última parte deste livro com o nome Discurso de
Jerusalém: O Romance e a Europa.
Milan Kundera, sendo checo, vê em Kafka uma grande inspiração. Em Algures lá Atrás, Kundera reflecte sobre o que é ser kafkiano e na importância da herança da obra de Franz Kafka para a história do romance. Vemos um romancista checo a comunicar com outro muito mais antigo do que o primeiro, mas infinitamente contemporâneo, porque, tal como Kundera escreve:
“Efectivamente, se, em vez de procurar o «poema» escondido «algures lá atrás», o poeta «se comprometer a servir uma verdade antecipadamente conhecida (que se oferece a si própria e que está «ali à frente»), está a renunciar deste modo à própria missão da poesia”. Por outras palavras, Kafka esteve à frente do seu tempo, como se de um visionário se tratasse e é isso que os romances devem almejar.
Com efeito, estas influências são muitas vezes citadas por
Kundera nas entrevistas que deu a Christian Salmon. Esta entrevista está
presente em duas partes do livro: Conversa sobre a arte do romance e Conversa
sobre a composição, em que Kundera explica como é que organiza as suas
composições, a influência que a música clássica tem nas suas obras, se os seus
romances podem ser considerados psicológicos e como é que se fundem num
conjunto de palavras-tema.
E, numa chamada de atenção bastante directa aos tradutores
que fazem um mau trabalho na interpretação das suas obras e lhes deturpam o
sentido, como diz Kundera, este passa a expor um conjunto de definições, como
se fosse um dicionário das palavras-tema nas quais os seus romances se baseiam.
Por exemplo, o que ele pensa sobre as palavras-tema de A Insustentável Leveza
do Ser: “Ser”, “Peso”, “Leveza”, etc.
Concluindo este post, obrigada ao professor por me ter
emprestado este livro e por, assim, indirectamente, ter reavivado o meu
interesse por Milan Kundera. Já sei o que é que a minha família me vai oferecer
pelo Natal.
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